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_ sexta-feira, outubro 17, 2003 _


Eu sou uma pessoa que passou a infância em pomares e pinhais. Vivia com os meus avós e com a minha tia numa aldeia que se chama Acipreste, a 5 km de Alcobaça. Na escola primária, houve um menino que entrou para a primeira classe quando eu e só terminou quando eu terminei o oitavo ano. Era o Paulinho. Tinha quatro irmãos mais velhos, também com longa frequência na escola primária: a Célinha, o Isidro e o Paulo (também). Como um todo, eram conhecidos por Os Quinquins, mas não sei porquê. A mãe deles chama-se Ermelinda e era uma mulher para todo o serviço, o que naquele meio ia desde as lides domésticas até à agricultura. A Ermelinda aparecia de vez em quando em casa da minha avó e ficava lá um dia inteiro a fazer pequenas coisas (tipo Grace do Dogville, olha!, que engraçado, era mesmo isso!). Nada disto era previamente combinado, simplesmente aparecia de manhã, acordava uma pequena quantia de dinheiro, fazia o que a minha avó ia dizendo e ao fim do dia pedia sempre mais qualquer coisa em géneros (tipo couves, ou tomates...). Às vezes a Célia (Célinha) ia também e isso para mim era bom porque gostava de brincar com meninas, embora a Célia não tivesse a sofisticação da minha prima Filipa de Lisboa, que após o divórcio da mãe com o pai regressara à terra natal desta última (o Acipreste). Lembro-me das brincadeiras com a Filipa mas não me lembro das brincadeiras com a Célia. A Ermelinda pedia-me (sem a minha avó saber) dinheiro emprestado (que eu tinha num mealheiro de metal ilustrado com figuras do rato mickey – eram as notas do natal, do aniversário e dos tios emigrantes quando vinham no verão), e houve uma altura em que já não me lembrava se ela me tinha dado o dinheiro de volta ou não, e então, depois de uma vez lhe emprestar 500 escudos, decidi apontar isso num livro da Alice Vieira. O meu plano era que na próxima vez que ela me pedisse dinheiro fosse ao livro da Alice Vieira consultar se podia dar ou não. Sou um bocadinho burocrático. Aconteceu que a Ermelinda nunca mais me pediu dinheiro, mas também nunca mais me devolveu os 500 escudos. Acho que ela fez isso porque me comecei a dar ares de arrogante com ela e com os filhos – entretanto já tinha passado para o ciclo e achava-os cada vez mais feios. Não quero dar uma imagem demasido boa e pura d'Os Quinquins: a Ermelinda conseguia ser incocente na sua ignorância, mas nessa ignorância também conseguia ser muito mesquinha (não era nenhuma Grace, after all).
Dispersei-me com o Paulinho e com a Ermelinda. Queria dizer que sou uma pessoa que passou a infância em pomares e pinhais e que vivi com os meus avós e com a minha tia numa aldeia que se chama Acipreste. Pois bem, nesse tempo assustei-me muitas vezes com cobras e com sombras e barulhos que se movimentavam pelo escuro – isto não é uma coisa poética, é uma coisa para levar mesmo à letra, tinha fobia do escuro e de reptéis que os gatos não conseguissem matar. Acho graça à imagem telúrica e mágica das aldeias que algumas pessoas têm. Já vi amigos urbanos (sensíveis) a perderem-se em divagações sobre o que mexe nos ramos das árvores do mundo rural, ou falarem apaixonados sobre as sombras dos caminhos sem alcatrão e sem luz eléctrica quando anoitece. Consigo sempre destroçar essas visões com alguma piada parva que lhes diz que eles nunca saberão realmente o que é isso. Agora vivo em Lisboa. Ontem, no caminho de regresso para o metro do Saldanha, assustei-me quando vi qualquer coisa a mexer-se por trás de uma fila de cinco caixotes de lixo. Assustei-me como quando era criança e vivia com os meus avós. Mas no passo seguinte percebi que era um senhor idoso que se abrigava entre as paredes de um prédio e cinco caixotes de lixo enfileirados. Agora, com 22 anos, isso não me assusta, mas gostava que esse senhor vivesse no Acipreste e não em Lisboa. O que mexe por trás das coisas em Lisboa é muito mais importante do que aquilo que mexe secretamente na natureza.
João | 12:43 |